SER TÃO SER COMO EPIFANIA DE UM COTIDIANO PERVERSO. UMA POÉTICA ALEGÓRICA DE TANTOS DESTERRITORIALIZADOS
Por Alexandre Mate
Por Alexandre Mate
Ser tão sem, sem ser tão, tão sem ser... (Uma brincadeira a partir de) Mário de Andrade.
A prática sem a teoria e esta sem aquela de pouco valem. Também em arte a práxis é vital ao criar. De outro modo, a objetividade do viver é alimentante da subjetividade do sonhar. O educador espanhol Jorge Larossa Bondía afirma, de modo sábio (porque ele aprendeu com aqueles que vieram antes e com aqueles com quem ele conviveu), no texto Notas sobre a experiência que: "Pensar não é somente raciocinar ou argumentar, como nos tem sido ensinado ao longo da vida; pensar é também dar sentido ao que somos e ao que nos acontece." É exatamente disso que se trata, ao coletarem relatos de vida de gente que mora muito além de qualquer e obrigatório direito-cidadão, os integrantes do Buraco d'Oráculo (grupo com mais de 10 anos, radicado na zona leste da cidade de São Paulo), buscavam levar para a cena de rua, mediado por símbolos, a história de tantos desterrados, desterritorializados...
Ao assumir o desafio proposto por Ser tão Ser: Narrativas de Outra Margem, para ressignificar esteticamente as vozes da imensa comunidade de destino que compreende a periferia paulistana, o Buraco d'Oráculo, porque tem estofo e condições para isso, conciliam de modo extraordinário o binômio – apresentado por Walter Benjamin em O autor como produtor – qualidade estética e pertinência política.
Na 26ª edição do Festivale – Festival Nacional de Teatro do Vale do Paraiba, o Grupo, já presente em outra edição, teve como seu lócus (espaço de apresentação), a "tímida" – quando comparada à majestade da Afonso Pena – Praça Cônego Lima. Trata-se de uma praça quase protegida, posto que não cortada por 4 ruas como é comum. Mais próxima à XV de Novembro, de todas as árvores, destaca-se uma belíssima seringueira (provavelmente centenária). Antes de o espetáculo começar, com belas músicas de Chico Buarque, Luiz Gonzaga... "me peguei perguntando", porque me é relevante: "Quem teria plantado aquela árvore? Quem, ao longo de tantas décadas, conservou aquela árvore e tantas outras que lá estão?" Claro, nome de jardineiros não figuram da História! Que importância teria esse tipo de gente para uma história contada, desde sempre pela elite?
Para onde iria aquela gente toda, quase em frenesi, que circulam e atravessam a pequena Praça? Quem desse imenso mar humano figurará, qualquer dia, da História oficial? Muito provavelmente nenhuma...
Muito distante dali, daquela singela Praça, mas aterrado na História, fui despertado para ir a um dos extremos daquele espaço: a peça começava sob um sol escaldante... Uma atriz dava início à prosa. A roupa bastante colorida, mas a narrativa tecida por significativa "tristezura". Lu Coelho era a primeira corifeia do épico que ali se instalava: personagem alegórica de tantas Lurdinhas (e vários outros nomes) desterradas pelo Brasil. Sem qualquer afetações, mas gigantemente cúmplice, a atriz apresenta a narrativa de sua emblemática personagem. O café (de verdade) que era preparado durante a fala não daria para todos, então, um expediente magistral e popular, afirma a personagem: alguns "olham o cheiro", outros lambem os beiços e outros tomam... Pronto, todos degustam aquele café! Durante o café tomado, "olhado", "beiçado" entra a cantoria: Calix bento. Ó, Deus salve o oratório (bis), onde Deus fez a morada. Óia meu Deus. Certa comoção planta-se em muita gente que foi apanhada de modo distraído pelo teatro de rua.
Na sequência, o ator Edson Paulo apresenta uma narrativa impecável na "pele" de José Justino Ventura. Assim como Lurdinha, este, segundo as autoridades é "mais um Zé", mais um migrante a inchar a cidade... Por meio da fala firme do ator, mesclada àquela emocionada da personagem, uma primeira inquietação é apresentada em coro:
– A gente, cada um de nós, começa onde nasce. Termina onde [Deus?] escolhe! Durante o espetáculo apresentado dia 06/09, uma senhora, adere ao coro e completa a frase.
– A gente começa onde nasce. Termina onde escolhe, porque já estamos na curva do mundo.
Na rodoviária, mais e mais gente sendo despejada para contemplar o horror e viver a miséria humana de uma cidade inóspita, perversa... A diáspora de gente se instaura e se faz quase que por meio de uma fila indiana ininterrupta.
A gente desterritorializada ocupa áreas abandonadas e infindamente distantes do centro. Os atores marcam o terreno ocupado delimitando o chão com terra vermelha. Aquela gente constrói coisas que se parecem casas, e tenta levar sua vida... trabalhando incansavelmente. Os atores, em coro, novamente, apresentam uma nova canção, que é quase um canto de trabalho: de gente que vende sua força de trabalho. Gente daquele tipo, com a expansão do poder econômico precisa deixar o território ocupado para dar lugar a um grande empreendimento.
A atriz Selma Pavanelli canta com a mesma força e atitude daqueles que fazem e cantam seus raps. A "rapeira" pré-anuncia a morte de Lurdinha pela truculência da polícia. Na cena de rua, cujo cenário próximo é a praça, e nela (na praça), outra vez a seringueira... é absolutamente curioso, mas no momento de morte uma lufada de vento mais forte, faz a seringueira chorar (muitas folhas caem e dão a impressão de um choro intenso)... Efeito da natureza. Espécie de milagre do teatro de rua!
No despejo daquela gente, muitos recebem uma carta de despejo da Prefeitura de São Paulo (trata-se de cópia do documento original). O documento promove certo alvoroço. Nesse exato momento, chega um casal jovem que se preocupa, pensam que os vendedores ambulantes é que seriam despejados da praça... O corifeu (Adailton Alves) logo depois disso afirma, em contragesto (alusão a ser foda) que Deus ajudaria os desterrados.
Do despejo muitos moradores vão morar em conjuntos habitacionais: tudo cinza, sem felicidade, com muita promiscuidade entre os vizinhos, pelo apertamento. De modo absolutamente panfletário (e necessário), o elenco, em forma de coro, canta: "Se o povo soubesse o valor que tem não aguentava desaforo de ninguém."
Em uma hora de espetáculo, histórias de desterrados ganham a cena e falam por incontáveis sujeitos falantes, mas silenciados pela História oficial. Adailton Alves, diretor do espetáculo, consegue articular o trabalho colaborativo e criar expedientes e cenas vibrantes. O público presente ao espetáculo, abaixo do sol das onze ao meio-dia, concordava com o olhar, entre emocionado pelo assunto e pelas imagens criadas.
No trabalho coletivo, música e figurinos têm função épica: tudo feito e construído pelos integrantes do Grupo. Nos adereços e figurinos singelos a presença das mãos dos homens.
Grande momento, singular e importante espetáculo, parafraseando alguém do público: "A terra sente a necessidade de ser útil!"
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